terça-feira, julho 21, 2015

não eu


Tudo começa com o não-eu, aquele que não habita em mim, que não está fadado a ser eu, uma construção contínua de um eterno vir a ser; aquele que não é pelo simples motivo da in-concretização do tempo de ser – à frente sempre à frente. Um não-eu que se move fora, em zona de similitudes paralelas.


Ele, aquele que não sou, também não se sabe, não é o não-ele, mas pressente que precisa ser, mesmo que ainda não se saiba. E precisa ser rápido para que seja enfim ele, e não-ele, o meu não-eu ruidoso de ser alguém, único e melhor.

Tempo a vapor





No tempo dos vapores, tudo começou diferente. Dizem que o primeiro homem líquido a evaporar o fez de birra com o tempo absurdo que levava para fazer uma xícara de café.

terça-feira, setembro 30, 2014

Avesso das águas






Os rios
[no meu caminho]
não são como os de Manoel de Barros
Não têm voz,
não têm cheiro e
sequer serpenteiam na superfície.


Amaldiçoados em sua gana de fluxo
foram mortos no nascedouro
Para eles, não foram feitos placas ou epitáfios.
Jazem, agora, no lado escuro
à espreita de uma insurreição.

quinta-feira, maio 20, 2010

tempo e poesia



Obra de crítica literária ou de reflexão histórica? Eis a emboscada que o crítico e poeta mexicano Octavio Paz cria no ensaio A outra voz, ao se valer de elementos da história para estabelecer pontes entre os discursos poéticos do passado, do presente e do futuro. No texto, a dominante, conforme o conceito jakobsoniano, parece ser uma temporalidade que articula história e poesia, na busca por uma delimitação do que seja modernidade. Mas que ninguém se engane, pois escondido sob o véu da conjuntura histórica está uma reflexão sobre a crise da cultura moderna e suas rupturas. Essa busca pelo conceito de moderno, por vezes, acaba por criar uma dicotomia entre história e poesia, sendo a primeira localizada no plano do científico, e a segunda, no campo do fictício, do irreal. O que remonta à própria separação entre mythos e logos, segundo Jean-Pierre Vernant em Mito e sociedade na Grécia antiga, inseparáveis no início dos tempos, mas distanciadas com o advento da escrita, que inauguraria uma nova forma de pensamento, uma espécie de racionalização do real. No entanto, é preciso ter claro que, em sua origem, a palavra história, do grego historiè, sempre esteve ligada ao ato de narrar.

“A palavra grega historiè tem, nesta época e neste contexto, uma significação muito mais ampla: ela remete à palavra histôr, ‘aquele que viu, testemunhou’. O radical comum (v) id está ligado à visão (videre, em latim ver), ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e também eu sei, pois a visão acarreta o saber). (…) Não há nenhuma restrição a um objeto determinado: a historiè pode pesquisar a tradição dos povos longínquos, as causas das enchentes do Nilo ou as razões de uma derrota military” (GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre história, memória e linguagem. São Paulo: Imago, 1997)

Para Roger Chartier, a caraterística narrativa da história fica evidente no texto Temps et récit, de Paul Ricoeur.

“De fato toda a história, mesmo a menos narrativa, mesmo a mais estrutural, é sempre construída a partir de fórmulas que governam a produção das narrativas. As entidades com que os historiadores lidam (sociedade, classes, mentalidade etc.) são ‘quase personagens’, dotadas implicitamente das propriedades dos heróis singulares ou dos indivíduos ordinários que compõem as coletividades que essas categorias abstratas designam.” (CHATIER, 1994, p.101)


Em A outra voz, Paz busca, nas dobras da história, em seus pontos de tensão, possíveis dados que componham um panorama sobre a poesia na modernidade. Essa linha de raciocínio fica evidente logo no início do capítulo Modernidade e Romantismo, quando o autor situa a poesia do final do século XX como “herdeira dos movimentos poéticos da modernidade, do Romantismo às vanguardas, e sua negação” (p.33).

Nesse sentido, a história funcionaria como uma espécie de memória que aporta subsídios para o entendimento da constituição do poético. Tanto que, na hora de explicar a transitoriedade do vocábulo moderno, o autor se pauta por suas modificações ao longo dos tempos, enumerando possíveis origens, que vão de uma simples periodização (“Renascimento, Reforma e o descobrimento da América), a fatores econômicos (“nascimento dos Estados nacionais, a instituição bancária, o nascimento do capitalismo mercantil e o surgimento da burguesia”), e momentos de transformação do pensamento (“revolução científica e filosófica do sécculo XVIII”). Por fim, reúne as três hipóteses como uma “explicação coerente”, o que já alerta o leitor com relação à procura do autor por uma unidade, seja na história ou na poesia.

Em seu percurso pela decifração do que é modernidade, Paz encontra nos interstícios do conceito o estabelecimento de um pensamento crítico como traço diferencial, sendo este baseado em “métodos de pesquisa, criação e ação”. Idéias como progresso, democracia, ciência, liberdade e técnica são creditadas pelo autor a esta crítica.

Entre os processos definidores da modernidade, o crítico mexicano ressalta o século XVIII como aquele em que a “razão fez a crítica do mundo e de si própria”. O homem passa a pensar sobre si e sobre o coletivo, estabelecendo projetos de reforma social bem como utopias. Para o autor, estas utopias representam uma “outra cara da crítica” (p.36) e, ao mesmo tempo em que atuaram como força motriz de sonhos e ações para a Idade Moderna, foram fontes de “horrores cometidos em seu nome” – visão que pode soar demasiado fatalista.

Paz acredita no zeitgeitz como elemento de identificação da visão do tempo. Dessa forma, cada época seria pautada por uma temporalidade, fruto dos anseios e vivências de sua sociedade. Se a Era Cristã determinou um tempo finito, condicionado a uma promessa de Eternidade, a Modernidade traria a idéia de que a perfeição estaria no futuro e, ainda, neste mundo e não em outro. “Na nossa [época] a presença constante das utopias revolucionárias denuncia o lugar privilegiado que tem o futuro para nós” (p.36).

O que Paz mostra, de forma silenciosa, é que a cada ruptura com o pensamento e as estruturas estabelecidas, o homem trava uma nova relação com o tempo. No Romantismo, por exemplo, temos a crítica da razão crítica; uma trasngressão da modernidade em seu próprio seio, feita por meio da analogia ou da ironia.

Ainda seguindo o rumo da articulação histórica, no capítulo Modernidade e vanguarda, Octavio Paz troca as proposições sobre a modernidade, que regeram o capítulo anterior, por questões mais bem definidas. Para começar, afirma que o século XIX foi o apogeu da modernidade, quando idéias que no século XVIII ainda significavam ameaças a ordem estabelecida – democracia, separação entre Igreja e Estado, liberdade de crenças – “se converteram em princípios compartilhados pelas nações”.

O crítico também classifica a Idade Moderna como “um ciclo que compreende o nascimento, apogeu e a crise da modernidade”. À crise, Paz chama de Idade Contemporânea”, ainda que considere as armadilhas desta denominação.

Para Haroldo de Campos, que compartilhava opiniões com o poeta mexicano, guardadas as devidas ressalvas, a crise das ideologias teria sido de grande importância para a consolidação da modernidade: “uma crise da utopia e a crise da utopia gerou a crise da vanguarda” (MACIEL, Maria Esther. Vôo transverso: poesia, modernidade e fim do século XX. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999).

Paz diagnostica neste ensaio do final do século XX questões que dariam outra feição à poesia do século XXI, num intercâmbio não explicitado com outros pensadores como Zigmunt Bauman, Jean Baudrillard e Gilles Lipovetsky. Entre os pontos aclarados estão a crise da vida pública; a liquidez de tudo o que se supunha sólido (da matéria cindida em átomos ao esfalecimento da instituição familiar); a releitura da realidade com atributos do imaginário; novos meios de reprodução da realidade; a ruptura com a natureza linear do relato; e o surgimento do espaço-tempo, que nortearia o trabalho de toda uma geração de artistas, com uma nova visão sobre o eu.

Se a arte sofreu mudanças significantivas com as crises do século XX, não é de se espantar que seu interlocutor também tenha se transformado. Com isso, veremos na poesia novos pontos de partida. A paisagem passa a ser urbana e o homem se vê sozinho em meio a uma multidão. Paz acredita que toda a mundança vivida em seu século seja, “por um lado, o resultado natural da revolução estética iniciada pelo Romantismo, sua consequência extrema; por outro lado, foi a mudança final, a mudança das mudanças: com ela acaba uma tradição que começou no Renascimento” (p.46).

Finalmente, em Poesia de convergência, o autor localiza as vozes que avisam sobre a proximidade do fim de uma sociedade. Em um tom beirando o pessimismo, o poeta vai da promessa de futuro feita pela modernidade à sensação coletiva desesperança, de crise de identidade e de descrédito com esse mesmo futuro. No entanto, ressalta que ainda há pulsar na arte, mas que esta terá de se reformular, deixando para trás o culto à mudança e à ruptura que nortearam a idéia moderna. Também não deve se esconder sob a máscara pós-moderna, uma vez que a expressão é equivocada: “uma maneira na verdade ingênua de dizer que somos muito modernos” (p.54). Pior seria utilizar a expressão anglo-americana pós-modernista que se arroga de vanguarda, mesmo tendo sido precedida, 30 anos antes, pelo modernismo, movimento literário ocorrido na América espanhola e Espanha.

Como que antevendo os anos vindouros, marcos de uma história que ele não veria escrita, Paz diagnostica o instante como o tempo do poeta do final do século 20 e a unidade e singularidade da poesia como características que estão além das amarras do tempo, porque feitas de “puro tempo”.
***

E agora que a resenha termina, parece-me ouvir ao longe, uma conversa nublada entre Walter Benjamin e Octavio Paz. Ainda com o pesar dos anos de Guerra, o primeiro lamenta que o narrador não consiga mais narrar, ao passo que o poeta lhe conforta, sugerindo que a narrativa é o próprio tempo.

apenas a gravidade

Puta que pariu, Raquel, o que você está fazendo aí, vai, pula, pula, olho para baixo, uma vontade enorme de ver como é o corpo caindo no sem tempo, sem qualquer preocupação que não seja cair, minhas pernas parecem ter se colado à velha tábua de madeira, a nuca lateja e pesa e a boca seca pede pela água plácida que se encontra abaixo, tudo parece girar e a maldita música do Bernard Hermann, que por tanto tempo me serviu para tirar um sarro do José e seu estúpido medo de altura, agora grudenta, zumbido de labirintite, que me perco, a boca seca, a perna inerte, o corpo oscilando para baixo, seguindo apenas a gravidade, meu corpo em desalinho, meu... pula, pula, ela nunca foi grandes coisas mesmo, uma escrota, se pular que diferença vai fazer, vai, sempre quis ver de perto um corpo caindo que nem em filme de ação, mas você sabia que eles usam bonecos nessas cenas, oh, vê se pula logo que eu tenho uma reunião em 20 minutos e tem um engarrafamento lá fora, ela quer platéia isso sim, não vai pular, duvido, nunca teve vida própria a coitada, não Raquel, sai daí, por que Raquel, as coisas iam tão bem... e minhas pálpebras tremiam furiosamente, como que para alertar o sistema nervoso de que algo não estava correto, que meus pulmões não aguentariam tanta água, que meu corpo gordo e flácido se desfaria, gelatinosamente, como se tivesse sido moldado para aquele momento, pula bolo-fofo, quero ver ela se espatifar, descer na água escura entre bolhas e subir que nem merda.

Agora, aqui em cima, sentada nesta prancha, sem nenhum rumor, apostas, gritos, nenhuma batida ou arfar, julgamentos, agora, quando penso naquela noite em que caí, obedecendo ao ritmo, ao zumbido de Bernard Hermann, aquele como o único movimento possível, a gravidade, a água e o corpo em encontro... passou-se muito tempo até que eu recobrasse a consciência a ponto de me sentar aqui nesta tábua, sem pesar, refazendo os passos até o final, quanta beleza em rever o próprio final, um único instante, tenso, pesado, cantado em nota de barítono alto, mas ao mesmo tempo leve, oco, guardando lá embaixo o aconchego, caroços de romã e, pela primeira vez, o centro.  

senhora da convergência


“Os homens terão logo que edificar uma moral, uma Política, uma Erótica e uma Poética do tempo presente. O caminho rumo ao presente passa pelo corpo mas não deve nem pode ser confundido com o hedonismo mecânico e promíscuo das sociedades modernas do Ocidente. O presente é o fruto no qual a vida e a morte se fundem” (PAZ, 1986, p.56)

Em A outra voz, Octavio Paz nomeia a poesia do século XX, de “arte da convergência” (p.57), caracterizada pela “intesecção dos tempos, o ponto de convergência”. A tese de Paz relaciona toda a literatura dos séculos anteriores e ainda aquelas por acontecer, num presente infinito, quase hipnótico e capaz de provocar vertigens. A poesia do século 20, para o escritor seria como a figuração feita por Borges em Biblioteca de Babel, onde o literário se apresenta como um organismo vivo, pulsante, autofágico e pronto a surpreender.

O homem deste século vive uma identidade destroçada, vítima de sua própria existência, desacreditado de Deus ou da Razão, num presente que parece não apontar nenhum rumo ou linha do horizonte. Vive uma fragmentação que, ao contrário da propagada pelos românticos do século 18 como potência para a construção do ser, lhe serve de clausura, levando-o a se perder ainda mais em labirintos.

Neste panorama, o escritor é aquele que reflete o zeitgeist, tomando como bússola e tábua a linguagem. Para Roland Barthes, a linguagem, por meio de seus jogos e capacidade performática, atuaria, justamente, como uma espécie de mola para o desvendamento parcial. A literatura seria, então, chave para o desnudamento desse sujeito contemporâneo, marcado por contradições e por uma busca frustrada de sua essência.

Em consonância com o espírito de seu século, Hilda Hilst traz para sua obra as angústias e questionamentos existenciais que lhe perspassam a alma. Exemplo da “arte da convergência” vaticinada por Paz, o romance A obscena senhora D conjuga os tempos num “agora sem datas” (PAZ, 1986), bem como os gêneros – poesia, drama e prosa.

“A prosa hilstiana pode ser considerada como um texto holístico por não poder ser classificado facilmente em gênero literário algum, pois é uma espécie de gêneros literários: é dramático, com as devidas rubricas seria um monólogo pronto para ir ao palco, é um tipo de poema lírico e também uma narrativa curta que não chega a ser um conto, nem romance ou novela”. (CARVALHO, 1999, p.111)

A fragmentação presente em A obscena senhora D se apresenta como um código cifrado em meio ao “fluxo de consciência” da personagem Hillé e da multiplicidade de vozes que habita seus pensamentos. Esses diálogos não apresentam uma temporalidade linear; existem envoltos nas brumas da memória da personagem que convive com fantasmas em fase de deterioração e já não distingue fatos passados e presentes. A narrativa de Hilst segue o ritmo da mente de Hillé, num monólogo interior obsessivo, que retorna sempre ao fio da primeira pessoa.

Para mostrar a complexidade humana, Hilst lança mão de oposições e contradições, criando uma personagem que, ao mesmo tempo em que “vomita” suas reflexões, numa cadência vertiginosa, se perde entre vozes e cacos de memória; que une sagrado e profano, Eros e Tânatos; que fala do corpo e da mente, de loucura e sanidade; e que conjuga acidez e lirismo.

Consciente de seu deslocamento – “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar o nome” (HILST, 2001, p.17) – Hillé vive à margem, entocada no vão da escada e tendo por companhia peixes feitos de papelão, efêmeros e opacos, que representam uma vida ilusória e fracassada, denunciada como uma mera imitação – o que nos remete à teoria platônica. Para a crítica Nelly Novaes Coelho o confinamento da personagem ao espaço exíguo da escada seria uma opção; Hillé seria como uma “prisioneira voluntária no vão-de-escada” (COELHO, 1993, p. 220).

Em A obscena senhora D, o deslocamento não habita somente o interior da personagem, ele está materializado também nas palavras. Alijadas de seus lugares tradicionais, as palavras são reconfiguradas, ganham novo peso, novas medidas, como se a autora, nos moldes da poesia cabralina, quisesse chegar às suas raizes.

(…) porisso falo falo, para te exorcizar, porisso trabalho com as palavras, também para me exorcizar a mim, quebram-se os duros do abismo, um nascível irrompe nessa molhadura de fonemas, sílabas, um nascível de luz, ausente de angústia (HILST, p.55)

(…) como se o Outro tivesse tempo para se deter com velhotas frasescas, escolhendo ditados, sabe que se vira no avesso para fazer ribombar com sua fala pomposa os ouvidos do Ausente, e como arremeda modéstia, humildade pobreza até:
eu, Nada, eu nome de Ninguém, eu à procura da luz
numa cegueira silenciosa (HILST, p.77)



Ritmo vertiginoso
Em alguns momentos, a narrativa de Hilst se assemelha, guardadas as devidas proporções, aos filmes de Alfred Hitchcock, seja pelo suspense, pela cadência, pela polifonia, ou pelos movimentos imaginários de câmera.

Em Hilst, cada frase parece conter um ato em suspensão, prestes a acontecer no próximo movimento de câmera. O leitor está quase sempre como em sobressalto, com o coração na boca e resfolegando pelo ritmo alucinado que, aqui, nada mais prefigura do que o próprio ritmo da vida. Em determinado momento, quando Hillé parece sucumbir à loucura, quase podemos ouvir a trilha de Bernard Hermann, criada especialmente para Vertigo (1958) e temos a impressão de que Hillé, sob a névoa de seus fantasmas, quedará tonta assim como o detetive Fergunson, vivido na tela por James Stewart.

Aliás, no que tange a semelhança com Vertigo, a ausência de pontuação em diversos trechos da narrativa hisltiana, assim como a troca de pontos finais por vírgulas e a rejeição às iniciais maiúsculas dão ao texto um fluxo contínuo que lembra as cenas em que James Stewart dirige por longas tomadas, à espreita da personagem de Kim Novak, enquanto busca organizar as peças de um quebra-cabeças psicológico. Ambos partem de pistas aparentemente desconexas a fim de iluminar pontos nevrálgicos da trama, com a diferença de que em A obscena senhora D não existe uma ordem cronológica que possa ajudar a protagonista em sua ação de desvendamento.

buscava nomes, tateava cantos, vincos, nas torçuras, no fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia de luz, o entender de nós todos o destino,
um dia eu vou compreender, Ehud
compreender o quê?
isso de vida e de morte, esses porquês
(HILST, p. 17)



Estrangeiros – experiência existencial

Aqueles que muitas vezes escolhem seu destino de artista porque se sentem diferentes logo aprendem que alimentam sua arte, e sua diferença, ao admitir sua semelhança com todos. O artista se forja no perpétuo retorno ao outro, a meio caminho da beleza, da qual não pode abster-se, e da comunidade, da qual não pode fugir. É por isto que os verdadeiros artistas não menosprezam nada: eles se obrigam a entender em vez de julgar (CAMUS, 1958)

Se é possível identificar semelhanças entre as obras de Hilst e Hitchcock, salta aos olhos as referências a Camus e Kafka. Assim como os escritores europeus, Hilst tem consciência da sociedade enferma da qual faz parte e busca entender essa patologia a partir do transcendente, do grotesco, do ontológico. A filosofia está presente na obra da autora de forma latente, como uma tentativa de conciliar as questões do Eu com as do mundo. Indo além, identificamos diversas correntes de pensamento do século XX no texto da autora.

Encontramos em A obscena Senhora D uma narrativa subjetiva, protagonizada por uma personagem atormentada pela busca do inapreensível que, mesmo em meio à multidão, sente-se sozinha, isolada, estrangeira como o Mersault de Albert Camus. Aqui, a crise do sujeito reflete também a crise da narrativa. A personagem Hillé materializa sua confusão e fragmentação em uma escrita, aparentemente desconexa, que rompe qualquer linearidade, o que está em consonância com a tese de Terry Eagleton de que “a história pós-moderna desconfia de histórias lineares”. A exemplo, de Kierkegaard, Hilst quer alcançar a verdade. Para isso, parte da literatura como única forma de entender a vida e, se quisermos ir à raiz da questão, evoca a literatura como a própria vida.

Engolia o corpo de Deus, devo continuar engolia porque acreditava, mas nem porisso compreendia, olhava o porco-mundo e pensava: Aquele nada tem a ver com isso, Este aqui dentro nada tem a ver com isso, Este, O Luminoso, O Vívido, O Nome, engolia fundo, salivosa lambendo e pedia: que eu possa compreender, só isso. (HILST, p.19).

É na criação literária que a autora experimenta a alteridade. A procura de sentido para a própria vida faz com que esbarre na essência, no que há de comum entre os homens. A esse respeito, o crítico Anatol Rosenfeld escreveu, em artigo de 1970, Hilda Hilst: poeta, narradora, dramaturga:

Há, em Hilda Hilst, uma recusa do outro e, ao mesmo tempo, a vontade de se ‘despejar’ nele, de nele encontrar algo de si mesma, já que sem esta identidade ‘nuclear’ não existiria o diálogo na sua acepção verdadeira. Pelo mesmo motivo chegou à ficção narrativa, depois do desengano — certamente provisório — que lhe causou a atitude cautelosa do teatro profissional (ROSENFELD, 1970).

O estranhamento do outro é um comportamento sintomático do século XX, e presente nos principais textos literários contemporâneos. Os personagens parecem pertencer a uma mesma classe de indivíduos céticos do porvir, cínicos, desconfiados da tradição, oscilando entre crenças pueris e o pessimismo avassalador. E a ação, esta parece encontrar-se na subjetividade.


***

quarta-feira, novembro 11, 2009

esfera refletora


(ilustração: Escher)







Me vejo na esfera refletora de Escher
Eu, Borges e o outro
Poeira representada
Redemoinho ordenado
Tudo em composição pragmática


O que busco não é a mera confissão
Quero entender o que de meu
É no outro
Quero o Aleph de Borges
Indagações e mutismo


Investigo os cantos obtusos
Arestas e redondos
Ângulos de um ponto que mal posso ver
Se mantenho o corpo ereto
Se me apego ao polegar opositor.


É preciso desnaturar, desconhecer, deixar de ser
E então o caos se operará
Como um milagre em que as coisas sem ordem
Dissonantes
Passam a fazer sentido.

Fragmentos


Ilustração: Arthur Rackam



escrevo
como quem reúne cacos
ruínas do que fui
imagens corroídas
paradoxos
signos atualizados
resignificados


investigo sombras
cinzas
busco o deformado
margem
entre o real e o percebido
filetes de associação
articulados a bel prazer

alma-vômito

Minha alma
Muda
Contrai, insufla
Presa na garganta
Espessa e fofa
Matéria densa
Que o corpo expele

domingo, novembro 08, 2009

não-eu

desconhecido de mim
busco no que não sou
o que poderia
e é
apenas desejo

:"ano da comunicação"

:“ano da comunicação”


diziam os números
códigos de letras
com valores estanques
e não tive nada a dizer

remoí, remoí, remoí
sem respostas
sem ruídos audíveis aos outros
apenas algoritmos e cordas

nada do plano sabia

as vozes
as que diziam os números
queriam espaço
cavavam os ocos
visgavam olhos, ouvidos, estômago

ruminei, digeri,vomitei
comi

mastiguei as vozes
com o ódio de quem é descoberto
queria lhes dar fim
retesei cada arco
queria esgarçar
desnaturar
esvaziar

trancadas
– eu e as vozes –
travamos
corpo a corpo
marcas sem ruído
entranhas unhadas
mãos abatidas
boca esfaqueada

E agora
que o ano se esvai
rogo para que os astros
e os códigos mágicos
calem as infames
que habitam em mim

segunda-feira, junho 08, 2009

per petterson por estopim

auto-retrato de Coubert

A Piauí do mês passado me trouxe de presente um texto de Per Petterson, um norueguês que traz a escrita em rédea curta e constrói espirais poéticas quase labirínticas. Seco e lírico. Do outro lado do mundo.

Borges estava mesmo muito à frente quando exaltava a poética viking.

Quanta coisa boa desconheço e deveria conhecer. Mas é impossível devorar o mundo todo. Lastimo minha ignorância e limitação.


nenhuma palavra que valha

Tenho uma vontade tão grande de escrever... mas meu senso de dever, me impede. "Primeiro a escrita que coloca comida no prato!". Ouço a fala ríspida e de poucos amigos que retumba de uma priscila grande em responsabilidade.

Mas, quietinha e acuada, lateja uma outra voz, que se desnaturalizou, como diria um antigo professor de biologia, e se espalhou por todo o organismo, numa luta muda pela retomada do espírito.

Meus músculos contorcidos em dor só queriam um pouco de poesia. Minha garganta sufocada por um bolo enorme de angústia gástrica, queria apenas vibrar algumas notas.

Sinto um calafrio que ziguezagueia da base da coluna até a nuca, reclamando alguma mobilidade.

Mas eu não posso nada...

Essa priscila anda trancada em um corpo sonâmbulo e austero. E este manifesto, se é que posso chamá-lo desse jeito, saiu assim meio sem querer, desajeitado e furtivo.

Agora, preciso pegar meu filho na escola.

sexta-feira, maio 22, 2009

Em busca de viabilização*

foto: espetáculo de João Saldanha

A necessidade de uma política cultural fundamentada e transparente é consenso entre os principais nomes da dança que acreditam na democratização do acesso ao patrocínio, na descentralização do financiamento e na difusão dos produtos culturais como uma importante medida para a evolução e o reconhecimento da arte no Brasil. Mas a deficiência da política de investimento vigente não é identificada como a única vilã dessa história. Outros pontos integram o conjunto de preocupações dos profissionais da dança, entre eles o desequilíbrio na distribuição da informação, a falta de uma política pública efetiva, o investimento concentrado em grandes nomes, a dificuldade de entendimento sobre a real função social da arte e a desvalorização da arte nacional no Brasil, em oposição ao reconhecimento internacional.

Segundo a Pesquisa de Informações Básicas Municipais - Gestão Pública 2005, promovida pelo IBGE, a dança está entre as principais atividades artísticas desenvolvidas no Brasil. Na prática, os grupos de dança estão presentes em 53% dos municípios, ficando atrás apenas dos grupos musicais (58%), e à frente dos corais (48%). Esses dados nos levam a uma pergunta inevitável: se tantas pessoas de diversas regiões do País se organizam para dançar, por que são tão poucas as iniciativas e os festivais ligados à dança?

Para o coreógrafo João Saldanha, o investimento, seja público ou privado, em artes cênicas – e aí leia-se capacitação, produção e circulação – é deficiente, muito aquém do necessário, e está associado a uma postura equivocada de política cultural. “Não há uma política para as artes cênicas, que acabam no fundo do baú na ordem de prioridades. Mas isso é resultado de uma questão cultural. A história nos mostra que os políticos não costumam dar a devida atenção à cultura, confundindo-a com entretenimento. O Brasil investe centenas de milhões em campanhas políticas, mas não investe na consolidação de sua cultura. O caso do Cirque du Soleil é sintomático e explicita a subordinação que sofremos de outras culturas. Um evento internacional desse porte abafa o que está sendo feito por aqui e ainda utiliza o dinheiro público. A cada ano multiplica-se o número de artistas brasileiros que fazem um trabalho de qualidade, de investigação em pesquisa e realização; produções, às vezes muito simples, mas com um alto poder de transformação. E é essa a cultura que não tem verba. No Brasil, quem recebe patrocínio está ligado à televisão. E dinheiro é o que viabiliza o bem cultural, não adianta só ser bem intencionado”, elocubra Saldanha.

O resultado direto desse cenário pernicioso é o aumento do número de pessoas sem acesso ao bem cultural por falta de oportunidade, e não de interesse. A experiência vivida por João Saldanha com o projeto Danças de Porão, em 2002, mostra que existe um público ávido por cultura, circunscrito às opções que lhe são oferecidas. A iniciativa gratuita aconteceu na época do Natal, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Trechos de um livro da Fayga Ostrower eram lidos para uma platéia de 60 pessoas. Divulgado boca-a-boca, o espetáculo chegou a reunir 3 mil pessoas. “Ao garantir a gratuidade, conseguimos atingir um público acima do esperado. E não estou falando da classe média. O expectador desse projeto vinha das classes D e E; pessoas humildes, com uma capacidade de percepção incrível. Essa experiência constata que a democratização depende da intenção. O empresariado precisa perceber que existem bens patrimoniais e culturais que atingem pequenas camadas, mas que no final estamos tratando de um somatório. Julgar a qualidade pela quantidade não é a atitude mais eficiente”, diz o coreógrafo.

O fato é que mesmo com tanto interesse pela dança o Brasil só possui cinco festivais profissionais, sendo dois no Sudeste – o Festival Panorama de Dança, no Rio de Janeiro, e o FID - Fórum Internacional de Dança, em Minas Gerais; dois no Nordeste – a Bienal de Dança do Ceará e o Festival de Dança do Recife; e um no Centro-Oeste – o Festival Internacional Nova Dança, em Brasília. Para viabilizar suas existências e fortalecer suas atuações, os cinco festivais uniram-se em 2005, em uma parceria que possibilitaria a criação de um circuito de dança para buscar patrocínio e conquistar o reconhecimento de entidades e empresas como a Funarte e a Petrobras. “O artista tem dificuldade para financiar e fazer circular seu trabalho, ficando restrito a algumas cenas do Brasil e a uma produção fragmentada. Mesmo assim, o ambiente é mais favorável hoje do que há alguns anos. A dança, seguindo o rumo da cultura mundial, mudou muito. Para começar, o mundo passou a contar com meios de comunicação até então inexistentes, que permitiram um maior acesso à produção artística de todos os recantos; surgiu uma consciência da necessidade de políticas públicas para cultura – ainda que elas estejam longe do ideal; e o setor ganhou em termos de profissionalização. Hoje, temos até sites que tratam especificamente de dança contemporânea, recebendo 12 mil visitas por mês”, conta a diretora e curadora do Festival Panorama de Dança, Nayse Lopez. Para ela, o marco desse processo de crescimento da dança nacional foi a Bienal de Dança de Lyon, que aconteceu na França em 1996, tendo como tema o Brasil. “Esse foi o primeiro grande evento que reuniu dezenas de profissionais da dança brasileira. Ali teve início uma maior integração entre eles, o que acarretou a criação de redes de contato e, consequentemente, o fortalecimento do setor”, diz Nayse.

Há quinze anos em atuação, o Festival Panorama de Dança é uma espécie de manifesto de resistência em um mercado incipiente. Resultado de um trabalho ininterrupto e perseverante, ao longo dos anos, o Festival fundado pela coreógrafa Lia Rodrigues conquistou notoriedade internacional e espaço na agenda de festivais nacionais, destacando-se como uma referência para a produção, promoção e reflexão sobre a dança. Com isso, passou a congregar artistas nacionais e estrangeiros, permitindo a integração dos profissionais e o intercâmbio de informações vitais para o desenvolvimento da arte. Para ampliar seu raio de ação, o Panorama tem como diretriz a venda de ingressos a baixo custo, o que provoca o interesse tanto de um público cativo quanto de novos apreciadores da dança. O somatório das ações dirigidas do evento é a inclusão social e democratização do acesso à cultura.

Nayse Lopez reitera a existência de um público crescente, em busca de informações sobre dança. “Gente que só tinha acesso ao clássico passou a conhecer e apreciar a arte contemporânea, percebendo a dança como um espaço para a produção do pensamento e o corpo como um terreno real para o desenvolvimento da arte. Festivais como o Panorama e o FID funcionam como vitrines para a dança comprometida com o desenvolvimento da linguagem. Entretanto, ainda não há uma real democratização da dança”, conclui.
Nesse sentido, a cidade de Votorantim, no interior de São Paulo, é uma exceção. Desde 2001, o projeto Quadra Pessoas e Idéias age discretamente na consolidação de um público para a dança, partindo do conceito de “tecnologia do convívio”, que significa reflexão e vivência da dança. A iniciativa promove a arte contemporânea entre jovens, visando a capacitação de mediadores que passam a integrar a equipe de profissionais do projeto. “Atuamos em consonância com os direitos universais para o desenvolvimento das pessoas a partir de elementos como a formação continuada, dinâmicas de convívio e a elaboração de estratégias para a difusão de produtos artísticos. Em cinco anos de trabalho, entramos em contato com aproximadamente 285 mil pessoas/espectadores”, conta o idealizador do projeto, Marcelo Proença.

Ainda assim, vale lembrar que a cidade de Votorantim fica em São Paulo, Estado que, segundo a pesquisa do IBGE (2006) sobre a distribuição de investimento entre os Estados brasileiros, detém as cidades que mais investem em cultura. Cerca de 37,6% do total de R$ 1,27 bilhão dos gastos realizados pelos municípios brasileiros em cultura, é investido em São Paulo.

E quando o assunto é a dança fora do circuito Rio-São Paulo, a situação mostra-se preocupante. Que o diga João Saldanha. Recém-chegado de uma turnê pelo Nordeste, ele conta que tanto os teatros quanto o público estão em processo de deterioração. “Há oito anos que eu não fazia uma turnê pela região e o que vi me deixou assombrado. Os espaços estão cada vez mais degradados e não têm equipamento necessário nem para receber o público. Teatros lindíssimos que datam do início do século 20, ocupados por morcegos e ratos. E o público, que há oito anos parecia ascender, não consegue nem pagar um ingresso de R$ 5”, conta o coreógrafo.

*matéria publicada no Boletim da Democratização Cultural, em julho de 2007

O papel da arte transformadora*

Um cenário desafiante permeia o universo da arte no Brasil. De um lado, a arte dita de circuito, que se restringe ao mercado formado por feiras, exposições em museus e galerias nacionais e internacionais, voltada para uma minoria da sociedade. Do outro, iniciativas e intelectuais que acreditam que o grande fator impeditivo para a democratização do acesso à arte seja o poder econômico. Em comum, essas facetas vivem um tempo de fortes transformações culturais, políticas, sociais e tecnológicas, propício à quebra de paradigmas e à reinvenção de conceitos.

Representante da geração dos anos 80, a artista plástica Mônica Nador viveu a angústia desse novo tempo na própria pele. Depois de atuar por cerca de 15 anos nesse circuito, transitando entre galerias e exposições de arte do mundo todo, Mônica percebeu que faltava alguma coisa a sua arte e, diante de uma parede em branco, descobriu que a lacuna seria perfeitamente preenchida pela palavra “utilidade”. Largou o grande circuito e migrou sua pintura das telas para as paredes públicas. Com isso, descentralizou a produção e ampliou a circulação da cultura para comunidades que não tinham nenhum acesso ao fazer artístico. Nascia então o embrião do Jamac - Jardim Miriam Arte Clube, um “clube” que promove oficinas de pintura para moradores da periferia paulistana.

A relação de Mônica Nador com o circuito sempre foi conflituosa e a artista quase desistiu do ofício, assombrada com a possibilidade de ter sua arte transformada em mercadoria. “O formato que o circuito me proporcionava passou a não me satisfazer. Eu queria fazer arte social, levar a beleza pura para todos. A partir daí, o meu desenvolvimento passou a ser uma ampliação do público até atingir uma população que não tem o menor contato com arte. Quero multiplicar esse trabalho, mas é muito difícil levar adiante uma iniciativa como essa sem capital para investir”, conta a artista.

Quando questionada sobre qual o cenário das artes plásticas no Brasil, Mônica responde que falta ao artista brasileiro a conexão com o universo que vivencia. “O poder transformador da arte não pode ser represado. Quando você não estabelece uma relação com o seu entorno passa a reter o conhecimento e pessoas como as que freqüentam o Jamac, tratadas como energia humana de trabalho, são alijadas do processo criativo. A arte que gera inclusão social permite que talentos despontem como em qualquer outra profissão”, conclui.

Para o diretor do museu carioca Paço Imperial, Lauro Cavalcanti, é um erro achar que a arte tem poder transformador sobre a questão social. “Não acredito em transformação pela arte e sim pela luta social. A arte é fundamental para as pessoas se expressarem, para terem uma vida mais bela e pode até contribuir com a socialização do que é produzido. Toda vez que artistas e arquitetos acham que podem transformar as pessoas o resultado é um modelo autoritário de arte. É uma ilusão achar que a arte tem um poder maior do que realmente tem”, argumenta.

Mesmo não acreditando no potencial transformador da arte, Lauro Cavalcanti aposta na educação como um dispositivo para ampliar o acesso à cultura. Há cerca de oito anos o Paço Imperial desenvolve uma ação efetiva no setor educativo, alinhando professores da rede pública à programação promovida no Museu. “Capacitamos os professores para que transmitam a seus alunos informações corretas sobre as exposições. Por uma questão de falta de verba, atendemos apenas escolas de regiões carentes que consigam se deslocar até o Paço. Gostaríamos muito de ampliar nossa atuação nessa área, promovendo outras ações na comunidade, como cursos de montadores de arte, mas esbarramos com a questão da carência de orçamento. O fato é que trabalhamos num território de carências e procuramos seguir adiante”, explica o diretor.

Nos anos 60, o artista plástico Hélio Oiticica deu mostras de que é possível conjugar a participação no circuito com o exercício político, criando obras sob o signo do coletivo, como os Parangolés, exibidos no MAM-RJ, durante a exposição Opinião 65. Oiticica foi convidado a se retirar por ter levado a experiência vivenciada com o samba no Morro da Mangueira para um recinto ainda restrito a uma minoria de terno e gravata. Uma tentativa de democratização da arte que ecoa ainda hoje, embora de forma tímida.

Segundo pesquisa do IBGE (2001), das 27 unidades federativas brasileiras, apenas 17 têm museus em mais de 10% de seus municípios. Essa estatística demonstra que até o acesso à arte mais institucionalizada, em pleno século 21 – quarenta anos depois dos Parangolés de Oiticica –, é precário e que iniciativas como o Jamac, que trazem a arte para o cotidiano, são fundamentais para difundir e democratizar o fazer e o fruir artístico.

*matéria publicada em 2007, no Boletim da Democratização Cultural.

sotaque caboclo sampleado*


À beira do cais convivem frutas típicas, poções mágicas, ervas que prometem solução, peixes frescos, sotaques, roupas, artesanatos, cores vibrantes e cheiros capazes de inundar a alma. A descrição que versa sobre o Mercado Ver-o-Peso (PA) também poderia definir a música produzida no Norte do País. Intensa, criativa e muita rica, a música da região compõe um patrimônio imaterial que vem sendo revisitado e revigorado pelas novas gerações. Carimbó, boi-bumbá, tecnobrega, samba de cacete, marabaixo e guitarrada são alguns dos gêneros regionais que receberam uma roupagem própria ao século 21, configurando as diversas influências sofridas ao longo dos séculos. Nesse caldeirão, além da poesia inspirada no entorno, encontram-se pitadas caribenhas e heranças africanas. E para quebrar o paradigma de quem olha a cultura amazônica de longe, vale esclarecer que a música do Norte não está essencialmente atrelada à sonoridade indígena.

Símbolo dessa retomada das raízes nortistas, o Estado do Pará vive uma efervescência musical, gerando novos nomes para o cenário nacional, aos moldes do que aconteceu em Pernambuco com o mangue beat. Mas essa similaridade não faz do Pará a “nova Recife”. Ao contrário do movimento de Chico Science, o processo criativo em foco no Pará não está vinculado a questões sociopolíticas. A música do Norte canta suas raízes e dialoga com sonoridades e idéias do mundo, e ponto final. Pelo menos é assim que alguns dos principais expoentes dessa movimentação enxergam o momento. “O mangue beat foi muito importante para o Recife, mas não impôs um modelo. O que acontece no Pará e no Norte como um todo é uma atuação muito espontânea que não tem conotação política”, reflete o músico Marco André.

Cantor, compositor e arranjador paraense, Marco André representa essa mistura da tradição amazônica com a modernidade global e recebeu por isso o Prêmio Tim de Melhor Cantor Regional (2005), além de ter integrado a lista dos dez melhores discos de world music do mundo em 2004, publicada pela revista européia Folk Roots Magazine. A música de Marco André utiliza o recurso eletrônico para unificar sons de instrumentos, como a guitarra e o teclado, a percussões características do universo amazônico, como o curimbó, a barrica, a matraca e as caixas de marabaixo e de marambiré. “O Norte tem uma pluralidade de ritmos que vêm sendo experimentados por artistas como o Pavulagem, que chega a levar dez mil pessoas para as ruas ao som do boi; e Coletivo Rádio Cipó, conhecido por suas pesquisas sonoras”, afirma o músico.
A influência dos Mestres
Talvez um dos maiores ícones do carimbó, ritmo afro-indígena relacionado à costa atlântica do Pará e à Ilha de Marajó, Augusto Gomes Rodrigues, o Mestre Verequete, nasceu no município de Bragança, no Pará, em um vilarejo conhecido pela alcunha de Careca. Como tantos outros brasileiros do interior, Verequete deixou sua cidade natal ainda pequeno, em companhia do pai, para tentar a vida na capital. Trabalhou como ajudante de capataz, açougueiro e marchante de porco, entre outros bicos. Durante todo esse tempo acumulou experiências que podem ser ouvidas em suas músicas, “pontos” cantados ao som do grupo Uirapuru, uma formação clássica de carimbó fundada por ele.
Com quatorze discos gravados, aos noventa anos o poeta e compositor foi retratado por Luiz Arnaldo Campos e Rogério Parreira no curta-metragem Chama Verequete, que recebeu prêmios nos Festivais de Belém, Curitiba, Florianópolis e Gramado, no qual levou o Kikito de Melhor Música de 2001 pela trilha assinada pelo próprio Verequete. Como diz o Mestre em uma de suas composições “o carimbó não morreu/está de volta outra vez/o carimbó nunca morre/quem canta o carimbó sou eu”.
Originalmente chamada de lambada, a guitarrada é um caso de revitalização que merece destaque. O ritmo, que nada tem a ver com a lambada difundida em meados dos anos 80, remonta a um tempo em que a região amazônica só conseguia captar o sinal de rádios do entorno, assimilando a cultura caribenha. O nome guitarrada veio bem depois, como uma derivação das palavras guitarra e lambada, criada para fazer jus ao som original.

Importante elo de ligação entre os mestres da guitarrada e o novo século, o músico Pio Lobato escutou a lambada instrumental de Mestre Vieira pela primeira vez aos 15 anos, durante um programa de TV. Anos depois, então estudante do curso de Educação Artística da Universidade Federal do Pará, Pio foi o responsável por trazer à tona os mestres Vieira, Aldo Sena e Curica, que haviam caído em esquecimento, e por reuni-los pela primeira vez no mesmo palco. Sua pesquisa sobre o tema, desenvolvida para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), acabou dando origem ao grupo Cravo Carbono, que faz uma releitura da guitarrada, acrescentando rock e poesia.

Na seqüência do Cravo Carbono surgiram outras bandas, como o La Pupuña, de Adriano Sousa (bateria), Marcio Goés (baixo), Diego Muralha (guitarra), Luiz Félix (guitarra e percussão), Rodolfo Santana (teclado) e Ytanaã Figueiredo (voz e percussão). O trabalho do grupo segue uma linha mais pop e costuma ser denominado de “surf music da pororoca”. Mistura à guitarrada elementos como o rock, o merengue, o brega, o surf music e a quadrilha. “A guitarrada é uma música instrumental com sotaque paraense, embora hoje a letra seja agregada à melodia, que se diferencia, justamente, por se basear na guitarra, instrumento que tem uma simbologia muito forte”, revela o guitarrista e percussionista Luiz Félix. No ano em que se comemoram os 30 anos do disco Lambada das Quebradas, do Mestre Vieira, o La Pupuña lança seu primeiro álbum, All Right Penoso (Ná Records), mostrando que é possível rejuvenescer a cultura sem deixar de lado as raízes.

Processador rítmico

A consolidação de uma vocação musical, o sucesso e o despontar de músicos paraenses em todo o Brasil são o resultado de séculos de influências musicais e da união de etnias e culturas diversas.

Parte da estratégia do Marquês de Pombal para colonizar o território amazônico, a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão Pará e Maranhão, em 1755, deu início à importação massiva de escravos africanos, que substituiriam a mão-de-obra indígena utilizada até então. Estima-se que nos primeiros vinte anos, aproximadamente 15 mil escravos africanos tenham desembarcado no porto de Belém, marcando substancialmente a cultura amazônica.
A reunião das culturas indígena, africana e européia liquidificadas com as influências caribenhas resultaram na identidade cultural do Pará, também reconhecida por sua musicalidade peculiar, ramificada em ritmos diferentes. O batuque de negros e índios, calado por um longo tempo por proibições sociopolíticas, ressoa hoje reinventado e remixado por uma geração que revisita suas origens para criar sons universais.

*matéria publicada no Boletim Natura Musical em 2007

música sem fronteiras, mas com identidade*

Em certa entrevista ao Jornal do Commercio de Recife, Baden Powell declarou que o Brasil podia dar música sem repetir durante dois mil anos. O violonista e compositor referia-se à grande expressividade musical de um País que, além de produzir uma infinidade de ritmos, mostrava-se receptivo às fusões de elementos sonoros. O próprio Baden acrescentou à música popular brasileira pitadas de jazz e de música erudita. O que ele sequer poderia imaginar é que o Brasil, assim como o mundo, viveria o fenômeno da globalização da cultura, em que a música rompe as fronteiras geográficas ao mesmo tempo em que redescobre os ritmos da tradição local. O resultado é o que se pode chamar de música raiz-antena, um gênero que singulariza o regional, as raízes, enquanto se conecta com o mundo.

Um dos representantes desse modelo, o grupo Pato Fu, alia a diversidade da música mineira ao que há de mais novo no cenário mundial. “Acho saudável a possibilidade de escrever e interpretar canções que não precisam obedecer a uma estética pura. Usamos o máximo da tecnologia para gravar uma canção com instrumentos muito brasileiros, como o triângulo, o cavaquinho, o surdo e o pandeiro. E a música acaba virando uma máquina do tempo sem limites estéticos. É muito interessante fazer música hoje, porque você pode usar elementos de todas as épocas, experimentar, recortar, colar, desconstruir e fazer algo novo com a idéia que lhe vier à mente”, avalia a vocalista do grupo, Fernanda Takai.

Para o cantor e compositor Pedro Luís – do grupo Pedro Luís e a Parede – o casamento entre a tradição e a modernidade é uma articulação cada vez mais incorporada ao cotidiano da música brasileira. “O País é muito vasto e as manifestações musicais são inúmeras. Em minhas viagens tenho visto muitas formas interessantes de praticar essa mistura e, de um tempo para cá, a juventude, tanto criadora quanto consumidora, tem se aproximado mais das manifestações ligadas à raiz brasileira, o que é bom para a cultura nacional”, diz o músico que foi considerado inovador em meados dos anos 90 justamente por misturar ritmos diversos como o rap, o funk, o samba e o maracatu.

No mesmo período em que Pedro Luís despontava no Rio de Janeiro, Chico Science criava um movimento no Recife que mudaria completamente os rumos da música, alçando o regional a um lugar de destaque, com o lançamento do disco Da Lama ao Caos –, um divisor de águas. “Até o início dos anos 90, a juventude espelhava-se muito na cultura vinda de fora. Cantávamos em inglês; a MTV chegava ao Brasil; e a gente estava tentando ser o que não era. O Chico Science abriu um caminho que foi percorrido por outros grupos como o Raimundos e o Mundo Livre S/A e o Brasil começou a prestar atenção à sua cultura. O resultado é que as novas gerações tiveram acesso a esse movimento mais amadurecido. Ao contrário do que era antes, hoje você faz a música aqui e busca fora o tempero”, comenta o multiinstrumentista, compositor e produtor BiD.

Quando todos estavam com os olhos voltados para fora veio a necessidade de olhar para o próprio umbigo, uma zona de aconchego, reflexo de memórias auditivas, culturais. E com a identidade afirmada veio a vontade de olhar de novo para fora e bater todas as influências no liquidificador da música. Mas esse movimento só se tornou possível por conta da evolução tecnológica sem precedentes.

*matéria publicada no Boletim Natura Musical em 2007